Decisão do TCU para o Fundo Setorial do Audiovisual
O Tribunal de Contas da União TCU julgou na última quarta, 27, o processo de auditoria do Ancine+Simples, que é a metodologia empregada para a análise das prestações de contas dos recursos públicos destinados a projetos audiovisuais pelo aporte de incentivos fiscais previstos em lei (fomento indireto) ou de repasses provenientes da agência e do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). A deliberação do tribunal (na forma do Acórdão 721/2019) terá um impacto devastador imediato e no longo prazo para o setor. Na prática, se mantida a decisão como está, o FSA, que hoje praticamente movimenta toda a indústria, deve parar por um bom tempo e nenhum novo recurso poderá ser aplicado nem pela Ancine, nem pelo Ministério da Cidadania (onde está a secretaria de Cultura).
Todos os processos que já tiveram as contas analisadas, inclusive aprovadas, deverão ser revistos sob novos critérios, e mesmo os projetos aprovados e já contratados, mas que ainda não receberam recursos, poderão ser afetados. Servidores da agência e diretores que aprovaram casos questionados pelo TCU passam a responder diretamente ao TCU e podem ser responsabilizados. Também processos que não têm relação com o FSA, como os investimentos via artigo 39, serão afetados por novos critérios de prestação de contas.
No médio prazo, a retomada do fluxo de investimentos tende a ser muito mais lenta e criteriosa, pois a agência terá que ajustar o fluxo de recursos liberados à sua capacidade de fiscalizar. No longo prazo, a consequência da decisão do TCU será, possivelmente, uma nova lógica de investimentos de recursos do FSA, que em 2018 representou nada menos de R$ 1,125 bilhão. Ou seja, se prevalecerem os termos da decisão desta semana, o mercado audiovisual acaba de conhecer seu meteoro. Resta saber os danos permanentes que vai causar, mas dificilmente as coisas ficarão iguais depois da decisão do Tribunal de Contas da União.
TELA VIVA teve acesso na tarde de quinta, 28, ao relatório do TCU. Dada a gravidade da decisão, optou por ouvir diferentes fontes do mercado e da Ancine antes de trazer qualquer tipo de conclusão sobre as implicações do acórdão. Trata-se de um relatório complexo, com 98 páginas, e cuja íntegra pode ser lida aqui. O documento traz os achados da auditoria, os relatórios das áreas técnicas e do relator, ministro André Luís de Carvalho, e o acórdão final aprovado pelo plenário do TCU. Neste acórdão é que estão as determinações e orientações para a Ancine. Entre as principais consequências do acórdão estão:
* Ancine e Ministério da Cidadania devem atentar “para a necessidade de só celebrarem novos acordos para a destinação de recursos públicos ao setor audiovisual, quando dispuserem de condições técnico-financeiro-operacionais para analisar as respectivas prestações de contas e, também, para efetivamente fiscalizar a execução de cada ajuste, ante a possibilidade de responsabilização pessoal do agente público pelas eventuais irregularidades perpetrada, com ou sem dano ao erário, em desfavor da administração pública”. Esta determinação (número 9.4 do acórdão) é considerada a mais grave no curto prazo, pois na prática trava a aplicação do FSA. Há quem diga que é uma espécie de “cautelar branca”. A palavra “atentar”, em um relatório do TCU, não tem tem o peso de “determinar”, mas significa que os gestores devem ficar de sobreaviso que, a partir dali, o que fizerem terá implicações. Na prática, ninguém assina nada.
* O Comitê Gestor do FSA deverá dimensionar “a quantidade de convênios e instrumentos congêneres para o eventual repasse de recursos federais ao setor audiovisual, em patamar compatível com a respectiva capacidade operacional e, especialmente, com a efetiva capacidade de fiscalização sobre os beneficiários e a análise das respectivas prestações de contas, entre outros elementos, para o aporte de fomento às atividades audiovisuais”. Ou seja, a Ancine só poderá repassar ao mercado o que tiver capacidade de acompanhar na prestação de contas. Hoje o descasamento entre contratos celebrados e contratos analisados é relevante (da ordem de 35 para um, segundo apurou este noticiário). O passivo de projetos para serem analisados é de quase 3,2 mil processos, e este ano devem entrar mais 870. Entre junho e fevereiro últimos, segundo dados obtidos por este noticiário, 23 processos tiveram a prestação de contas concluída.
*Segundo o TCU, a Ancine deve ajustar a IN 124/2015 (que estabelece os critérios de prestação de contas) com novos critérios, entre eles a impossibilidade de que falhas materiais sejam classificadas como falhas formais; comprovação de despesas apenas com nota fiscal; impossibilidade de prestação de informações por meio de declarações; uso de um mesmo documento para a comprovação de despesas de mais de um projeto.
* Demanda para que a Ancine apresente, em 60 dias, um plano de ação para reanálise das prestações de contas de todos os projetos audiovisuais aprovados, sem ou com ressalvas, pelos critérios da IN 124/2015. (Um plano de ação já foi elaborado e apresentado ao TCU, mas como parte de outro processo, como se verá mais adiante).
* A Ancine deve garantir que a nova metodologia de análise verifique todos os documentos comprobatórios das despesas realizadas, entre outros necessários à evidenciação do bom uso dos recursos públicos.
* Caso na prestação de contas constate que houve recursos do FSA utilizados para o pagamento de tributos (IR e CSLL), os valores devem ser glosados (devolvidos). O mesmo vale para despesas a título de contrapartidas por doação. As duas práticas ficam vedadas daqui em diante.
* A Ancine terá que criar mecanismos para impedir que as proponentes de projetos façam pagamentos a seu próprio favor. Por exemplo, remunere um de seus sócios como diretor de uma produção, mesmo que por meio de outra empresa.
* O Ministério da Cidadania (e a Secretaria de Cultura) devem regulamentar a aplicação de recursos em audiovisual de forma a evitar “os elevados percentuais de despesas acessórias, como passagens, alimentação, tarifas bancárias, advogados, em coexistências com as bonificações de gerenciamento já remuneradoras das entidades beneficiárias, de modo a viabilizar a simplificação dos procedimentos de análise das prestações de contas e do uso regular dos recursos públicos aportados”.
* Existe uma recomendação para que a Ancine “atente” para o uso de novas tecnologias nos processos de prestação de contas, como mecanismos de blockchain e robôs virtuais.
* A Ancine também fica impedida de contratar serviços para a execução por terceiros das atividades precípuas e finalísticas da entidade.
* Uma série de servidores e ex-diretores da Ancine que atuaram nos projetos que foram auditados pelo TCU e que levaram aos achados do TCU são chamados no prazo de 15 dias a prestar esclarecimento sobre as irregularidades apontadas pelo tribunal. Estão arrolados Andrete Cesar Santos da Silva, Débora Regina Ivanov Gomes (atual diretora), Luís Mauricio Lopes Bortoloti, Manoel Rangel Neto (ex-presidente da Ancine), Marcial Renato de Campos, Roberto Gonçalves de Lima (ex-diretor), Rosana dos Santos Alcântara (ex-diretora) e Thainá Domingos Albernaz.
* Nos casos específicos auditados pelo TCU, a produtora O2 e seus sócios Fernando Ferreira Meirelles, Paulo de Tarso de Carvalho Morelli e Andrea Barata Ribeiro também passam a ser responsabilizados pelos achados no projeto “À Deriva”. Os servidores da Ancine acima citados também são responsabilizados e deverão responder em processos específicos já abertos.
Impacto profundo
O cenário desenhado com a decisão do TCU é considerado gravíssimo por uma série de fatores. O primeiro, obviamente, é a paralisia que a agência enfrentará até que tenha segurança jurídica de avançar ou não diante das determinações do tribunal de contas. Ou até que a agência recorra e eventualmente consiga suspender alguns pontos do acórdão.
Existe um risco em relação aos projetos aprovados no ano passado, mas que ainda não receberam recursos (estima-se em cerca de R$ 600 milhões). Como a regulamentação da agência permite, as empresas responsáveis por muitos destes projetos estão antecipando despesas por conta própria na expectativa de serem reembolsados. Estes reembolsos podem não acontecer.
O ponto mais grave é a determinação de uma nova tomada de contas, inclusive dos projetos já analisados e aprovados, a partir de novos critérios, o que cria uma grande insegurança jurídica no mercado. O risco de judicialização é alto, pois as regras seriam aplicadas “retroativamente”, o que é juridicamente questionável.
Os novos critérios de tomada de contas também afetarão a análise de projetos que não estão no FSA, como os do Artigo 39, por exemplo, ainda que neste caso não haja ainda o entendimento de que o passado precise ser reanalisado.
Também a vedação de transferência de recursos para empresas ou prestadores de serviço que tenham vínculos societários com a empresa contemplada (prática comum no mercado), por exemplo, é um grande problema. A necessidade de comprovação de despesas com documentos fiscais, e não apenas com declarações de despesas, também é considerado um grande obstáculo em um mercado com o nível de informalidade considerável.
Fim do Ancine+Simples
O TCU está em essência encerrando o mecanismo do Ancine+Simples, com o argumento central de que a metodologia de prestação de contas flexibilizada e a conferência por amostragem seriam incompatíveis. O relatório técnico do TCU descreve: “verificou-se que a metodologia Ancine+Simples, de análise por amostragem dos projetos audiovisuais, não atende ao princípio constitucional da prestação de contas. A falta de verificação dos comprovantes de despesa depõe contra a transparência esperada e abre brechas para a ocorrência de irregularidades. A amostragem é procedimento de auditoria, tarefa distinta da do tomador de contas, o qual deve debruçar-se sobre todos os recursos públicos de sua responsabilidade, aferindo-lhe o bom e regular uso. Não há margem para a adoção de sorteios que levam à análise integral da documentação de apenas alguns poucos processos de prestação de contas. Achado tipificado como irregularidade grave.”
Futuro
Diversas fontes ouvidas por este noticiário apontam que, se mantidas as determinações do TCU, a operação da Ancine fica inviabilizada na forma atual. O plano de ação que a agência já vinha elaborando para atender ao que o TCU indicava desde a cautelar de maio de 2018 prevê pelo menos mais 60 servidores na área de prestação de contas. No ano passado, 40 já haviam sido removidos, de ofício, para a área, o que inclusive gerou uma grande insatisfação interna na agência. Mas, ao mesmo tempo, 2018 foi o ano de melhor execução do FSA, com um índice de mais de 80% de aplicação, o que aumentou significativamente a quantidade de projetos contratados, e que terão que ter suas contas fiscalizadas. Mas muitos dos projetos ainda não começaram a receber os recursos.
A tendência é que a aplicação de recursos no varejo, projeto a projeto, como é hoje a base de funcionamento do mercado audiovisual, deixe de existir. A discussão que ainda será travada no colegiado da Ancine é qual outro modelo poderá ser adotado, de modo a gerar menos processos para serem fiscalizados e demande um menor volume de documentos para serem analisados. Uma das ideias é a ampliação de mecanismos de financiamento em empresas, seja de infraestrutura ou de produção, e não mais em produções específicas. Será uma mudança de forte impacto em todo o mercado audiovisual.
Cenário em desenvolvimento
A decisão do TCU desta semana já vinha se desenvolvendo desde maio do ano passado, quando o tribunal apontou falhas na prestação de contas do uso de recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Na ocasião, o TCU chegou a preparar uma cautelar que suspenderia a aplicação do fundo (o que está acontecendo na prática agora). Desde então, a agência entregou um plano de trabalho para sanar as falhas apontadas na auditoria e uma defesa em relação aos procedimentos adotados. O problema é que boa parte da defesa e todo o plano de ação foram entregues no bojo da cautelar de maio de 2018, e não no processo de auditoria em si. Com isso, muito do que havia sido colocado acabou não sendo considerado pelo TCU no julgamento desta semana. A expectativa é de que o plano de ação entregue pela Ancine seja analisado nas próximas duas semanas, mas não se sabe ainda como o novo acórdão repercutirá no entendimento.
Também as INs 124 e 125, que estabelecem os critérios de prestação de contas e são questionadas pelo TCU, estão em processo de reavaliação dentro da Ancine e podem ser revistas em breve, mas com o colegiado desfalcado de um diretor, questões polêmicas não estão sendo colocadas em pauta. A primeira reunião entre os diretores da Ancine que deve discutir o julgamento do TCU acontece na próxima terça, dia 2. Sobre este assinto vale ler o que foi dito ainda nestas matérias de 2018 aqui e aqui.
Posição da Ancine
A Ancine emitiu a seguinte nota sobre o episódio:
1 – A ANCINE ainda não foi formalmente notificada do referido acórdão.
2 – A Agência está de acordo com a necessidade de aperfeiçoar os instrumentos de controle sobre a aplicação de recursos públicos, inclusive mediante a confecção de um novo modelo de prestação de contas em substituição ao modelo Ancine+Simples.
3 – O período analisado pelo TCU (01/01/2016 a 30/06/2017) é anterior à atual gestãoda ANCINE. Frise-se que o Diretor-Presidente da ANCINE, Christian de Castro, desde que assumiu a presidência, em janeiro de 2018, tem promovido mudanças importantes na política de audiovisual e no funcionamento do Fundo Setorial do Audiovisual, como o objetivo de elevar o controle e o rigor sobre as análises de prestações de contas.
4 – O plano de ação já foi devidamente apresentado pela ANCINE, mas ainda não foi analisado pelo TCU. Razão pela qual não poderia ser contemplado no referido acórdão.
5 – Já foi publicamente informado desde o ano passado que a ANCINE concorda com a argumentação do Tribunal de Contas da União de que os processos de prestação de contas do Fundo Setorial do Audiovisual que vinham sendo apresentados anteriormente precisam ser revistos e aprimorados. Neste sentido, está sendo feito no Âmbito da Agência um trabalho para implementar uma série de medidas que visam dar maior segurança, transparência e celeridade aos processos.
6 – O modelo de prestação de contas vigente, o Ancine +Simples, foi condenado por apresentar fragilidades que precisam ser resolvidas, de acordo com o próprio TCU, que em auditoria anterior identificou a necessidade de maior agilidade na análise dos processos. Estamos construindo outro modelo, mais adequado às recomendações feitas.
7 – Por fim, é fundamental destacar que o audiovisual se trata de uma cadeia produtiva complexa e longa. Assim, a conclusão dos processos decorrentes dos editais em aberto, incluindo a prestação de contas, têm um lapso temporal médio para serem finalizadas, de modo que as correções apontadas pelo TCU podem ser feitas com os processos em andamento, sem prejuízo ao erário.
Samuel Possebon, Tela Viva News, 29 de março de 2019