Presidente da Anatel dispara: “interesses casuísticos não podem confinar a internet brasileira”
O presidente da Anatel, Leonardo de Morais, um dos artífices e apoiadores entusiastas dos dois projetos de lei que promoverão profundas mudanças no mercado de telecomunicações, o PLC 79, que direciona os investimentos para a banda larga, e o PL 3.832 , o novo marco da TV paga e do audiovisual, e que deverão ser aprovados pelo Senado Federal nos próximos dias, está, no entanto, combatendo frontalmente a posição de agentes do mercado que, no seu entender , estão apostando na “judicialização” dos principais temas em debate e adotando posições, que, para ele, são no mínimo “casuísticas”. “Ao querer confinar a internet aos muros da lei brasileira e apelar para os argumentos da perda da arrecadação tributária para angariar apoios é no mínimo casuístico. A legítima reclamação da carga tributária não pode ser solapada pelos interesses de plantão”, reage.
Embora Morais, nessa entrevista ao Tele.Síntese, não tenha nominado explicitamente para quais agentes de mercado estaria direcionando as suas críticas, o presidente da Anatel aponta o dedo. “Combato a posição do grupo que se manifestou em recente audiência pública sobre as mudanças na Lei do SeAC”. Essa audiência ocorreu no dia 27 agosto, no Senado para debater o parecer do senador Arolde de Oliveira sobre o PL 3.832, de autoria do senador Vanderlan Cardoso, e que muda as regras atuais da TV paga e sua relação com a produção e distribuição de conteúdo audiovisual.
Nessa reunião pública foram convidadas as operadoras diretamente envolvidas com as mudanças em análise, como a SKY, os produtores de conteúdo nacionais e estrangeiros, como a Fox, a TV Globo, a HBO, demais operadoras de telecomunicações e representantes da sociedade civil. No final, somente a Claro e a sociedade civil se apresentaram ao debate.
O projeto, que acaba com as proibições entre produtor e distribuidor de conteúdos de TV atende ao pleito da AT&T, das operadoras de telecomunicações que atuam no país e dos presidentes Bolsonaro e Trump, e do presidente da Anatel. O PL propõe mudanças na atual lei do Seac (Lei de Serviço de Acesso Condicionado, ou TV por assinatura), aprovada em 2011. Se a lei não for alterada, a AT&T será obrigada a vender a operadora de TV paga, a SKY, seu único ativo de telecom no Brasil, porque comprou um dos maiores produtores de conteúdos do planeta, o conglomerado Time Warner.
A Sky teria que mudar de dono, na interpretação da área técnica da Anatel, que já se manifestou sobre o assunto, porque a atual lei estabelece que operadora de telecomunicações não pode se meter no mercado de produção ou comprar direitos audiovisuais. E as empresas que produzem esse conteúdo também não podem ser operadoras de TV paga, mecanismo conhecido como propriedade cruzada.
O fim da propriedade cruzada é também uma das bandeiras do presidente da Anatel. Mas ele entende que as mudanças não podem parar por aí. Morais defende também que os benefícios da ampla competição e o fim da propriedade cruzada deve se estender para o mundo da internet. E a liberação do mercado para o mundo da internet chegou a ser contemplada no parecer do senador Arolde de Andrade, que depois da audiência pública, resolveu mudar de posição e sugerir que essa questão fosse tratada em projeto de lei específico. Essa alteração, para o presidente da agência reguladora, irá manter o Brasil isolado em um ‘Tratado de Tordesilhas” que não tem mais vez no mundo atual.
A seguir os principais trechos da entrevista:
Tele.Síntese – O PL 3. 832, em discussão no Senado Federal, sofreu reviravoltas desde que foi apresentado. Inicialmente, previa a remoção dos artigos 5 e 6 da Lei do SeaC, que tratam da propriedade cruzada. Depois foi ampliado pelo relator, para fazer valer essa liberdade também para a internet. Após a audiência pública, o senador mudou seu parecer. Concorda com a proposta como ela está?
Leonardo de Morais – Não acompanhei a audiência pública, mas li pela imprensa especializada as posições apresentadas e me afeta em particular a posição de um grupo econômico, da qual discordo fundamentalmente.
Tele.Síntese – Por quê?
Morais – Talvez a motivação da posição externada decorra da tentativa de defender um modelo de negócios que perde vantagem comparativa. Refiro-me ao modelo triplo-play, que sustentou um dos diferenciais do grupo, mas que é desafiado pela tecnologia, notadamente pela internet. A minha discordância primordial está com aqueles que defendem que as mudanças na lei fiquem restritas à revogação dos artigos 5 e 6 do SeAC.
Tele.Síntese – O princípio que norteia esses dois artigos – quem produz conteúdo audiovisual não pode distribuí-lo – não é o que motiva a mudança na atual Lei?
Morais – Ora, parece-me legítimo que diversos segmentos pleiteiem uma alteração que garanta a segurança jurídica por eles considerada necessária para viabilizar a disponibilização e distribuição do conteúdo de forma linear, com programação pré-programada, na internet. Mas o debate atualmente colocado é ruim para a segurança jurídica, atributo que deveria ser mais caro a todos nós. Quem ganha com a judicialização do debate? Judicialização significa incorrer em custos de transação que irão estancar a inovação.
Tele.Síntese – Um dos atuais alicerces da Lei do SeAC, não é justamente o fato de que as regras que devem ser cumpridas pelas operadoras de TV paga devem ser seguidas por qualquer agente econômico e em “qualquer meio”, como diz a atual legislação?
Morais – Como justificar as restrições decorrentes da Lei do SeAC tão somente para a realidade brasileira? O que justifica mantermos as barreiras artificiais que prejudicam o livre mercado, a concorrência e a inovação? A resposta que recebo costumeiramente é: por que se trata de um pacto, de um tratado de Tordesilhas. Isso não me parece uma explicação suficiente. Aliás, é um péssimo argumento.
Tele.Síntese – Entre as diferenças do mundo de telecomunicações e do mundo da internet está, sem dúvida a questão tributária. Na TV paga, os impostos aqui no Brasil chegam a ser um dos mais altos do mundo, com alíquotas de mais de 40%. Na internet, a carga tributária é muito menor…
Morais – Um ator de telecom suscitar a possibilidade de perda tributária dos estados da federação como argumento a sustentar para que a internet fique confinada aos muros da lei brasileira me parece, no mínimo, casuístico. O setor de telecomunicações reclama, com absoluta razão, da carga tributária. Essa legítima reclamação não pode ser solapada pelos interesses de plantão.
Miriam Aquino, Telesintese, 2 de setembro de 2019