Risco de abuso sexual de crianças e adolescentes ronda Natal

fev 19, 2010 by

Disque DenúnciaPlanejamento para Copa 2014 está concentrado em obras de infra-estrutura para receber turistas. Enquanto isso, álbuns com fotos de adolescentes circulam em shopping center no bairro de Ponta Negra, na capital potiguar

Natal (RN) – Alertas sobre o crime de exploração sexual infanto-juvenil aumentam durante as festas de Carnaval. Não foi por acaso que a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR) aproveitou o momento especial do ano para lançar a Campanha Nacional contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

Este tipo de ocorrência não se restringe apenas ao período de folia e pode vir associado a outros grandes eventos turísticos que atraem massas de dentro e de fora do país. Álbuns com fotos de adolescentes circulam dentro de um shopping center no bairro de Ponta Negra, na capital potiguar. Escolhida como uma das cidades-sede da Copa do Mundo de futebol de 2014, Natal (RN) já se agita com os preparativos (e as expectativas econômicas) dos jogos.

O governo federal promete liberar R$ 400 milhões do “Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) de Mobilidade Urbana da Copa de 2014” para a capital do Rio Grande do Norte. De acordo com a prefeitura, serão 16 grandes construções, incluindo viadutos, complexos viários, obras de sinalização e acessibilidade para facilitar a circulação de pessoas durante a disputa que deve atrair legiões de turistas.

Desse total, R$ 81 milhões serão repassados ao Estado e R$ 305 milhões para o município, por meio da Caixa Econômica Federal (CEF). A prefeitura e gestão estadual entram com uma contrapartida de 5% e são responsáveis pelas desapropriações. Autoridades estaduais destacam que os processos de licenciamento ambiental – necessários para a execução das obras – já foram entregues antes do término dos prazos.

A empolgação com as perspectivas de melhoria da infra-estrutura e de atração de investimentos com a Copa do Mundo não se repete quando o assunto é outro: os problemas sociais decorrentes de uma competição esportiva desse porte. O possível aumento da exploração sexual de crianças e adolescentes, que preocupa organizações da sociedade civil e do poder público que atuam na área, está entre as potenciais consequências negativas da Copa.

Em entrevista à Repórter Brasil, o secretário estadual-adjunto de Turismo, Túlio Serejo, confirma que não há representantes da sociedade civil ou de órgãos que trabalhem com a exploração sexual infanto-juvenil no comitê estadual da Copa 2014, criado especialmente para a ocasião e coordenado pelo secretário Fernando Fernandes de Oliveira.

“Esse tema [exploração sexual de crianças e adolescentes] nem deveria ser tratado aqui na Secretaria de Turismo. Nós não temos mecanismos de repressão. O que fazemos é tomar cuidado com a publicidade, que não é focada na exposição das mulheres e adolescentes”, declara o secretário-adjunto Túlio.

Ele pondera que “este tipo de turista” não interessa para o Rio Grande do Norte e lembra um caso que ocorreu em 2005, quando o secretário de Turismo mandou retornar para a Itália um vôo que trouxe somente homens com idades entre 20 e 35 anos. “Nós não toleramos a exploração sexual. Mas se você for analisar, os números são insignificantes”.

A prática de escolher garotas por foto em books que passam pelas mãos dos frequentadores de centros comerciais seria um meio de driblar flagrantes, denuncia Sayonara Dias, coordenadora pedagógica do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) Casa Renascer. “É uma forma mais discreta de escolher uma adolescente. Antes, muitas meninas ficavam na praia do bairro. Agora menos, por causa de um trabalho de fiscalização e conscientização que foi feito nos locais onde há muitos turistas”, explica Sayonara, que também integra o Comitê Estadual de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes do Rio Grande do Norte.

No entendimento de Sayonara, ações isoladas não resolvem o problema. Ela defende a implementação de políticas públicas permanentes e intervenções articuladas. “Está havendo uma mobilização muito grande no Estado por conta da Copa. Temos que aproveitar o espaço de discussão e inserir os temas sociais. Um evento desta dimensão pode trazer consequências desastrosas no caso da exploração sexual de crianças e adolescentes. Não podemos perder de vista o que há de negativo e o quanto isso pode ser agravado com a Copa”.

A rede de exploração sexual é articulada e conta, segundo a coordenadora do Cedeca, com a colaboração que pessoas ligadas ao turismo, como os agentes de viagens, os taxistas, os donos de hotéis, bares e restaurantes. “O crime começa quando o agente de viagem exalta que há meninas e meninos à disposição para programas, continua quando o turista chega na cidade e pergunta para o taxista onde pode encontrar uma garota e finaliza quando o dono do hotel permite a entrada da adolescente”, narra.

A exploração sexual de crianças e adolescentes é crime. Praticantes, aliciadores e facilitadores da ação criminosa, , prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Código Penal, estão sujeitos à punição.

Resposta

Para sensibilizar os empresários do ramo hoteleiro, donos de bares e restaurantes, Ana Paula Felizardo, diretora da ONG Resposta, criou em 2001 – em conjunto com diversas organizações governamentais e não governamentais – o Código de Conduta do Turismo Contra a Exploração Sexual Infanto-Juvenil. Trata-se de uma declaração formal, de livre adesão, que orienta e regula a conduta ética das empresas e pessoas vinculadas ao turismo, contra a exploração sexual infanto-juvenil.

Entre as cláusulas estipuladas estão: estabelecimento de uma política ética em relação à exploração sexual de crianças; treinamento das pessoas envolvidas com o turismo no Brasil; estabelecimento de uma cláusula nos contratos com fornecedores, na qual se repudia a exploração sexual de crianças; providenciar informação aos viajantes; geração de um relatório anual.

Para acompanhar quem aderiu ao código – após passar por um processo de avaliação e receber o Selo Paulo Freire de Ética no Turismo, a ONG possui um sistema de monitoramento que conta com a colaboração da sociedade civil. A organização capacita voluntários para que eles atuem como agentes de monitoramento. Outra estratégia de Ana Paula é estimular o engajamento de universitários da área de turismo no processo.

São realizadas, dentro da universidade, capacitações sobre ética e turismo. Além disso, a ONG Resposta mobiliza estudantes nas campanhas contra exploração sexual infanto-juvenil junto a turistas no aeroporto internacional e nos hotéis, pousadas e praias. Sete universidades passaram a incluir o tema no currículo ou na semana de iniciação científica.

O Código de Conduta está disponível em seis idiomas e pode ter uma versão para toda a Região Nordeste. “Para isso, precisamos contar com as secretarias de Turismo dos Estados. Já existe um Conselho de Turismo Integrado no Nordeste. Vamos aproveitar e incluir o tema a partir desta articulação”, anuncia a coordenadora Sayonara.

Problema

A Região Nordeste é a que mais cresce em número de visitantes estrangeiros (cerca de 62% são da União Européia), segundo o Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur). Esse destaque como opção de destino representa incremento para a economia regional, mas também levanta questionamentos sobre os possíveis riscos da motivação ligada a abusos sexuais de crianças e adolescentes.

Embora o termo “turismo sexual” não seja considerado correto pelo Ministério do Turismo por não ser uma modalidade, o programa Turismo Sustentável e Infância (TSI), vinculado à pasta federal, reconhece que o Brasil é um destino bastante conhecido no mundo para a prática da exploração sexual infanto-juvenil. O problema existe em pelo menos 930 municípios brasileiros, dos quais 436 são destinos turísticos nordestinos.

Estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR), mostra que quase 1/5 das cidades do Brasil possui redes organizadas de exploração sexual de adolescentes e, deste total, cerca de 1/3 está localizada na Região Nordeste.

Ao menos 110 rotas internas e e 131 rotas internacionais relacionadas ao tráfico de mulheres e adolescentes com menos de 18 anos para fins de exploração sexual cruzam o país. Os números são do Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria).

Entre maio de 2003 até o final de 2007, foram 49.577 telefonemas em todo o Brasil para o Disque Denúncia 100, coordenado e executado pela SEDH. Durante este período, foram denunciados 96.436 crimes, sendo 8.546 somente denúncias de exploração sexual. Durante o ano de 2008, houve 5.973 registros dessa natureza. O Sistema Nacional de Combate à Exploração Sexual Infanto-Juvenil apresenta o Rio Grande do Norte em terceiro lugar em número de denúncias de exploração sexual de crianças e adolescentes no turismo

Perfis

Diferentemente do que muitas pessoas possam acreditar, não são apenas os homens de meia-idade ou idosos que praticam o turismo com motivação sexual infanto-juvenil. Jovens adultos também são vistos pelas praias de Natal (RN) com outras garotas e garotos. Segundo o Programa TSI, não há um perfil definido desse turista – podem ser viajantes domésticos ou internacionais, das mais diferentes classes sociais, casados ou solteiros.

De acordo com dados do TSI, algumas pessoas já viajam com esse propósito. A maioria, no entanto, é formada de abusadores situacionais, que normalmente não tem preferência sexual por crianças e adolescentes, mas aproveitam a situação quando se dão conta da “disponibilidade”.

As vítimas de exploração sexual são, por sua vez, majoritariamente de classes economicamente menos favorecidas e com baixa escolaridade. Além disso, há casos de jovens (parte delas oriundas de minorias étnicas e comunidades deslocadas) que saem do interior em busca de melhores condições de vida. As vítimas podem ser meninos e meninas, muitos dos quais também sofrem abuso sexual em suas próprias casas. Em Natal (RN), as vítimas moram principalmente nos bairros periféricos Redinha, Mãe Luiz e Comunidade África.

De acordo com Adriana Shirley Caldas, da Delegacia Especializada em Defesa da Criança e Adolescente (DEDCA), o número de denúncias de exploração sexual aumentou no Rio Grande do Norte. As incidências, porém, são menores do que os casos de maus tratos e negligência. A delegacia é a única no Estado que atende casos de violação de direitos das crianças e adolescentes.

Na opinião da dela, que atua como delegada há cinco anos, o número reduzido de denúncias tem a ver com certa conivência diante do problema. “As pessoas não aceitam violência contra crianças e adolescentes. Elas denunciam. Mas, no caso de exploração sexual, há uma tolerância, como se a vítima quisesse estar nesta situação. Pactuar com isso é um equívoco”.

Adriana realiza fiscalizações em parceria com o conselho tutelar, com objetivo pedagógico, de reforçar o teor da legislação perante os turistas. “Quando encontramos um casal e a garota aparenta ser muito nova, abordamos para mostrar a situação e os problemas que o turista pode ter. Normalmente, os homens ficam tranquilos. Já as meninas reclamam da nossa presença”, conta.

Duas situações, segundo ela, são mais comuns: as meninas que são exploradas por moradores do Rio Grande do Norte geralmente são mais novas e estão em situação de miséria; já as meninas que saem com turistas têm uma situação economica um pouco melhor e ganham dinheiro e presentes.

Na maioria dos casos, um aliciador que convence as jovens com promessas de bons ganhos e articula o encontro com os turistas. Há ainda situações sem intermediários (em que adolescentes conseguem ajuda de taxistas, que levam turistas diretamente até elas), em que a exposição é maior.

O tráfico de seres humanos ocorre dentro do Rio Grande do Norte e também entre Estados do Nordeste. “As adolescentes normalmente ficam em bordéis na estrada e saem com moradores locais e caminhoneiros. Nesse caso, elas ficam reféns da situação poque os proprietários cobram a comida e o quarto que elas usam”, complementa a delegada Adriana.

Ângela Gertrudes Souza Kung presta atendimento psicológico semanalmente às vítimas de exploração sexual e suas famílias no Cedeca Casa Renascer. Ela explica que as consequências, principalmente por que as vítimas estão em processo de formação, são muitas: baixa auto-estima, dificuldades de se relacionar com outras pessoas, falta de concentração e desenvolvimento cognitivo comprometido.

Existem ocasiões em que as próprias famílias incentivam e até obrigam filhas e filhos a fazer programas. “Para ganhar dinheiro, uma menina de nove anos foi encaminhada pelo próprio pai para a exploração sexual. Nesse caso, a criança foi para um abrigo. Quando a família se envolve no tratamento, a reintegração é facilitada e diminui as chances de que a vítima volte a ser explorada”, relata a psicóloga. Em outros casos, o vício em drogas é o fator principal. Há meninas que apontam a falta de oportunidades como motivação”.

Consumo

É comum ligar a exploração sexual com a pobreza. Existem, porém, outros fatores que devem ser levados em conta, como a desestruturação familiar, a violência doméstica – física ou sexual – e o apelo ao consumo.

Para Durval Muniz de Albuquerque Lopes, doutor em História pela Universidade de Campinas (Unicamp) e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o Brasil projetou uma imagem sensual no exterior, reforçada pelas propagandas com mulheres em trajes de praia em locais paradisíacos.

“Há uma narrativa sexualizada, um mito do erostismo em nossa literatura, como no caso de Casa Grande e Senzala [de Gilberto Freyre] que foi muito lido no exterior. Existe uma ênfase no corpo, inclusive nas manifestações populares, como a dança e a música. Esses fatores sustetam o cenário da exploração, já que há uma naturalização do sexo”, opina o professor.

Outro fator lembrado pelo pesquisador é a permanente ilusão do casamento com um estrangeiro que proporcionará a esperada mudança de vida. “Isso chega até a se realizar com uma ou outra garota e acaba por sustentar o sonho de tantas outras meninas”.

Nos últimos tempos, as relações de gênero se modificaram, segundo as pesquisas de Durval. “A mulher se empoderou e a diferença de poder não é clara em muitas situações. Quando um homem fica com uma garota, a distinção hierárquica da relação fica clara. Ele repõe a hierárquia do gênero. Por isso também os homens circulam com as meninas em todos os lugares, se exibindo. Não é uma situação escondida”, analisa.

Mais uma questão relevante é o consumo de roupas, tênis e outros artigos que podem elevar o status entre jovens. Para Durval, a identidade do adolescente no seu grupo social é dada pela marca que ele consome. “Se ele não consome, é excluído. Para ter acesso, ele se submete à exploração sexual. Estou falando de outro nível de consumo, não de alimentos”, acrescenta o professor. Apesar de frisar outros fatores, ele não deixa de reforçar o peso da falta de oportunidades. “Quais são os tipos de emprego disponíveis para os jovens de periferia? Empregada doméstica ou mecânico. São relações de trabalho em que a exploração também é muito grande”.

Campanha Nacional contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes

A iniciativa tem como um dos principais objetivos estimular as denúncias de exploração de crianças e adolescentes por meio do Disque 100 – serviço gratuito que recebe ligações telefônicas de qualquer parte do país. Confira o vídeo de divulgação da campanha.

“Quem observar que existe alguma criança entrando num motel, hotel ou bar com um adulto, quando observar a existência de algum sistema de exploração comercial envolvendo adolescente, ligue para o Disque 100 ou procure o conselho tutelar de cada cidade”, destaca o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH).

O serviço funciona diariamente de 8h às 22h, inclusive nos fins de semana e feriados. As denúncias recebidas são analisadas e encaminhadas aos órgãos de defesa e responsabilização, conforme a competência, num prazo de 24h. A identidade do denunciante é mantida em sigilo.

* A jornalista da Repórter Brasil viajou em setembro de 2009 para Natal (RN) como parte do programa de intercâmbio da Organização Não Governamental (ONG) Ashoka para conhecer o trabalho da ONG Resposta.

Artigos relacionados

Tags

Compartilhe

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *