Qualidade exige qualidade
Os textos e discursos sobre a educação brasileira, não é de hoje, deveriam nos levar a uma situação de impasse. E a consciência desse impasse poderia ser o começo de novo comportamento mental, a desembocar em ações práticas mais eficazes.
Citemos, por exemplo, os títulos de dois livros do educador Arnaldo Niskier: S.O.S. educação (1991) e Apocalipse pedagógico e outras crônicas (2007). A educação precisava ser salva há duas décadas… e não foi. Chegamos, portanto, ao fim? Não seria mau… para recomeçar.
A julgar pelo clima verbal da mídia a respeito da educação, a ideia de que a educação brasileira é calamitosa deixou de ser ideia. Tornou-se palpável como uma pedra no meio do nosso caminho, à força de repetidas declarações nos últimos 50 anos:
“A presente situação da educação no país é nada menos que calamitosa.” (Darcy Ribeiro, quando ministro da Educação, em 1962, conforme Veja)
“A educação, no Brasil, é um problema social de inacreditável gravidade.” (Florestan Fernandes, sociólogo e político, em 1989)
“A situação da educação é dramática no Brasil.” (Dom Raymundo Damasceno de Assis, quando secretário-geral da CNBB, em 1998)
“A educação no Brasil é um fracasso.” (Gastão Vieira, quando deputado, político do PMDB, em 2006)
“A educação brasileira é uma calamidade.” (Ana Maria Machado, escritora, em 2008)
“Na média, a educação do país está em estado trágico e vergonhoso.” (senador Cristovam Buarque, em 2008)
“A educação brasileira é um lixo.” (deputado Ciro Gomes, do PSB, em 2009)
“A educação brasileira é uma das piores do mundo. […] O ensino público brasileiro é um perfeito desastre.” (Marcos Bagno, professor, em 2009)
Dois problemas complicados e implicados
Ou, em tom menor, como nesta declaração eufemística: “A situação educacional brasileira é muito complicada” (César Callegari, sociólogo). Na qual, o adjetivo “complicada” é menos forte do que “trágica” ou “calamitosa”, mas explicaria por que a tragédia não teve um desfecho, por que o lixo ainda não foi recolhido, ou por que a calamidade se arrasta há tanto tempo.
O problema quantitativo, o do acesso, chaga do nosso sistema de ensino que se tornou evidência incômoda em meados do século 20, denunciada, por exemplo, no livro Educação não é privilégio, de Anísio Teixeira (1957), foi e é visto como prioridade nacional, ainda que tenham surgido vozes discordantes, como a do ministro da Educação Jarbas Passarinho, em plena ditadura, numa entrevista à revista Veja (12/11/1969):
“Muita gente dá grande importância ao problema quantitativo e eu acho extremamente secundário. O grande problema para mim é o qualitativo da educação brasileira. Eis aí uma linha de ação geral muito importante. Antes ter um analfabeto do que um alfabetizado vítima de um sistema farsante de Educação. Não estou dizendo que o nosso atual é. Respondo em tese, mas por isso eu admito que a qualidade do ensino deve se sobrepor à quantidade. Primeiro devemos ter qualidade, para depois então ganhar a batalha do número, a batalha dos bolos, como diz muito bem o Mário Simonsen.”
Na verdade, os dois problemas são importantes e estão relacionados. O acesso deve ser universal e de qualidade, respeitando-se as inclinações e escolhas dos estudantes. Ou teremos então de aceitar o raciocínio oposto ao de Jarbas Passarinho, como o do economista Gustavo Ioschpe, na mesma Veja, quatro décadas depois (13/02/2008), ao afirmar que “é preferível para o país ter um balconista com diploma superior a outro analfabeto”.
Talvez o desafio da qualidade tenha sido postergado, ou mal trabalhado, no momento em que, também inadiável, era o enfrentamento do desafio da quantidade.
Ainda é preciso muito arroz com feijão
Seja como for, o senador Demóstenes Torres (DEM), referindo-se a “mais uma década perdida” na educação, faz em artigo recente (O Globo, 04/02/2010) afirmações que vale a pena ressaltar:
“Por conta das inúmeras oportunidades perdidas de implementar um sistema educacional decente, continuamos a apresentar índices de atraso que superam até mesmo os países mais pobres da América Latina, que temos a honra de liderar no plano geopolítico.”
“Enquanto o Brasil não se definir pela universalização da Escola em Tempo Integral, o sistema educacional vai continuar a formar analfabetos funcionais de alto custo financeiro.”
“Estamos a desperdiçar tempo e dinheiro, além de pôr em dúvida a real capacidade de nos convertermos em um protagonista global confiável, já que não se pode levar a sério uma nação com indicadores educacionais piores do que a Bolívia.”
O senador está se referindo ao Relatório de Monitoramento Global da Educação para Todos 2010 da Unesco, em que o Brasil, embora sejam ali reconhecidos os esforços do MEC, continua com índices altíssimos de repetência no ensino fundamental, um analfabetismo indecente, renitente e com novos contornos, e outros problemas crônicos que se traduzem num IDE (Índice de Desenvolvimento da Educação para Todos) de 0,883 (a escala vai de zero a 1) [ver, neste OI, “A educação brasileira e seus números”). Algumas outras informações oferecem mais lenha para a fogueira das manchetes: dos 195 mil estabelecimentos de ensino do país, quase 10% (mas já foi pior!) não têm energia elétrica, 37% carecem de biblioteca e em 10% não há banheiros.
Isto significa que, não obstante o destaque econômico do país na América Latina, não obstante o trabalho incansável e meritório do atual ministro da Educação, Fernando Haddad, ainda precisamos comer muito feijão com arroz para demonstrar excelência no campo da educação, ou ao menos sair do grupo dos medíocres, e chegar ao nível de Argentina, Cuba, Uruguai, Chile, México e Venezuela, conforme quadro abaixo:
Calamidade ou inquietação exagerada?
Teremos razão em corroborar o consenso de que a educação no Brasil é um lixo, uma calamidade, um desastre, aceitando o que a mídia capta e faz repercutir e, com ela, divulgando como fato inconteste, em conversas, em textos, em palestras, o nosso vergonhoso colapso educacional? O fato de ainda haver 14 milhões de analfabetos no Brasil significa que somos realmente um caso perdido? E que a situação dos que frequentam as nossas escolas não é muito melhor, haja vista que milhares, milhões de estudantes têm baixo nível de conhecimento de leitura e escrita, dificuldades insanáveis para aprender matemática, aversão às ciências, em comparação com o padrão de ensino europeu?
É preciso refletir com calma, sem cair numa inquietação exagerada… e paralisante. Nem é mentira que estamos numa situação educacional difícil, comprometedora, mazelenta, nem é totalmente verdade que a educação brasileira é um lixo, que não presta para nada, nem para reciclar…
Primeiramente, temos de admitir que existe educação de qualidade no Brasil, tanto no ensino público como no particular. São exceções que as avaliações apontam, o que é de se lamentar, certamente. Mas é um dado que, modesto, não vamos ignorar. Deve ser mencionado e divulgado. É possível identificar escolas, professores, alunos, famílias, municípios que se encontram no círculo, pequeno mas real, da qualidade satisfatória. É estratégico reconhecer esse fato para vislumbrarmos saídas concretas do impasse a que estamos chegando.
Sabemos que há muita alfabetização fictícia, insuficiente, mas também temos de reconhecer que, embora exíguo, há um contingente de estudantes que leem e escrevem bem, que há no Brasil consumidores/apreciadores de leitura e produtores/criadores de texto.
Em suma, generalizações indevidas, por piores que sejam os indicadores a autorizar essas generalizações sobre a falência da educação no Brasil, ajudam muito pouco. E não se trata de ocultar o mal e partir para o mundo dourado, mostrando as exceções de qualidade, os heroísmos eventuais, como exemplos de que a culpa está na classe docente despreparada. O problema educacional tem várias dimensões a serem analisadas em conjunto. E é com uma visão ampla, aberta às contradições e às boas possibilidades, que nós, e a mídia, devemos discutir educação. O fascínio pelas hecatombes nos impede de ver oportunidades, por menores que sejam. Uma certa obsessão pelo pior tende a nos tornar céticos, e a encerrar a história cedo demais.
Indicações para novas abordagens
Proponho algumas correções de rumo em nossos textos e declarações (e em nossas práticas) sobre a educação nacional, com a finalidade de evitar que a sensação de catástrofe total inviabilize as possibilidades, existentes, reais, de reação e melhoria, mesmo que a longo prazo:
** Não nivelar todas as escolas por baixo, mas enfatizar a qualidade, onde quer que ela esteja.
** Qualidade não é uniformidade: sempre haverá disparidades, logo, o ideal não é que todos sejam ótimos, mas que todos melhorem sempre, respeitando-se características e idiossincrasias regionais (bairros, cidades, estados…).
** Identificar as características que fazem uma escola (pública ou privada) ser bem-sucedida, sem encarar tais circunstâncias como algo excepcional. Qualidade serve como inspiração.
** Quem critica a falta de qualidade da educação deve propor saídas com ações de qualidade.
** Qualidade educacional implica vida profissional de qualidade: as condições de trabalho dos professores devem melhorar, incluindo salários que, como contrapartida, tragam-lhes exigências de atuação da melhor qualidade.
** Avaliações não falam sozinhas, é preciso interpretá-las pedagogicamente. O fracasso escolar em língua portuguesa e matemática não impede a eclosão da qualidade em diferentes caminhos existenciais: técnicos de grande habilidade, artistas criativos, excelentes esportistas e outros tipos de profissionais.
** As avaliações, por mais desagradáveis que sejam seus resultados, não devem nos impressionar além da conta. São motivo (termômetro) para olharmos a realidade (doente, febril), com qualidade de visão, e não só para produzir lamentações desqualificadoras… até que sobrevenha a morte.
** As avaliações são menos importantes do que os problemas, e os problemas, se encarados com honestidade e qualidade, tornam-se uma chance para que os críticos se transformem em líderes sociais.
** Ensino de qualidade implica quantidade de horas: é necessário que o período escolar seja de no mínimo seis horas diárias, do ensino fundamental ao médio.
** A educação é uma questão que interessa aos políticos, aos profissionais da mídia, aos economistas, aos empresários, mas é, sobretudo, uma questão que cabe aos educadores, filósofos e poetas analisarem e nela atuarem livremente, com o apoio dos políticos, profissionais da mídia etc.