Decreto coloca Anatel e Ministério das Comunicações em rota de colisão
O Ministério das Comunicações publicou nesta segunda, 2, Decreto 12.282/2024. Trata-se de um decreto que transfere para o ministério algumas das prerrogativas até então assumidas pela Anatel em relação à definição de projetos e compromissos realizados a partir do aporte de recursos decorrentes de leilões de autorização para o uso de radiofrequência, além dos projetos estabelecidos pela Anatel como obrigações de fazer (uma espécie de substituição de sanções por condutas irregulares).
O principal artigo do decreto estabelece que “o Ministério das Comunicações definirá as diretrizes e as estratégias para a execução de políticas públicas de telecomunicações, de radiodifusão, de conectividade e de inclusão digital, no âmbito da administração pública federal, inclusive aquelas relacionadas aos compromissos realizados a partir do aporte de recursos decorrentes de leilões de autorização para o uso de radiofrequência”.
Hoje, estas diretrizes e estratégias são definidas por três grupos, com a ratificação do Conselho Diretor da Anatel:
- GAPE (que acompanha os projetos de conectividade em escolas custeados pelos recursos do leilão de 5G, cujo orçamento é de R$ 3,2 bilhões).
- Gaispi (que acompanha a implementação das obrigações do edital na faixa de 3,5 GHz, como a construção das infovias sub-fluviais, a distribuição de kits de recepção de TV via satélite, a rede privativa governamental e a mitigação de interferências na banda C do satélite, e cujo orçamento total é de R$ 6,3 bilhões);
- Gired, o mais antigo dos grupos, que acompanhou as obrigações decorrentes da limpeza da faixa de 700 MHz de 2014, a um orçamendo na época de R$ 3,5 bilhões, mas que ainda tem alguns trabalhos complementares definidos após a conclusão das etapas anteriores.
O decreto diz que “as diretrizes e as estratégias (…) se destinam a orientar as medidas a serem adotadas pela Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel”, o que sinaliza que os grupos, e a própria agência, ficarão, por sua vez, submetidos a estas determinações.
Além de passar por cima do conselho da Anatel como palavra final, outro problema é que estes grupos têm modelos de governança que incluem outros atores afetados, como representantes do setor de radiodifusão, representantes do setor de satélite, das próprias operadoras de telecomunicações e outros ministérios. A composição de cada grupo varia caso a caso.
GAPE no alvo
O caso mais complexo, e que é o aparente alvo do governo com o decreto, é o do GAPE (que acompanha os programas de educação conectada). Ali, existem três diferenças importantes.
O primeiro é que o edital de 5G não estabelecia nenhuma meta nem projeto específico, deixando ao GAPE a definição de tudo (o que seria feito, como seria feito, o alcance, etc). Outra diferença é que as políticas de Educação Conectada estão submetidas à ENEC (Estratégia Nacional de Educação Conectada), que coloca o Ministério da Educação como orquestrador, a partir de um comitê, e o Ministério das Comunicações “divide” funções na definição de políticas.
Nos bastidores, o que existe é uma pressão do governo para que a Telebrás seja contratada para ser a provedora de conectividade nas escolas quando a tecnologia de satélite for necessária, além de divergências explícitas entre a visão do coordenador do GAPE (conselheiro Vicente Aquino) em relação a como deveriam ser os projetos e aquilo que o MEC e a ENEC definiram. Aquino defende que o sejam contratados projetos completos, da conectividade ao dispositivo final, enquanto a ENEC estabeleceu que com recursos do GAPE devem ser contratadas apenas a conexão externa e interna e a eletrificação.
Além disso, as operadoras de telecomunicações, que participam da governança da EACE, não querem ser obrigadas a contratar a Telebrás, primeiro por uma questão principiológica (afinal, estariam contratando uma estatal para executar uma função que o setor privado pode cumprir) e por acharem que existem outras soluções técnicas mais eficientes.
Governança
Todas as entidades afetadas pelo novo decreto executam os projetos por meio de entidades específicas, de gestão privada. No caso do GAPE, a execução fica por conta da EACE. Já o Gaispi executa por meio da EAF e o Gired tem na EAD a sua empresa executora.
Em comum, todas estas entidades têm a característica de terem uma gestão privada, submetida a um conselho formado pelas empresas vencedoras do leilão. As empresa organizaram estas entidades de modo a blindá-las de interferências políticas, ou seja, as diretrizes emanadas pelos grupos gestores podem até definir o que fazer e dar algumas instruções sobre como fazer. Mas não conseguem entrar em detalhes operacionais sobre o que contratar, quais os fornecedores e em que condições.
Esse modelo tem funcionado de maneira mais ou menos tranquila nos projetos do Gired e do Gaispi, que as obrigações estão previstas no edital e, mesmo no caso de sobras, existe uma definição prévia dos projetos a serem executados. O problema é no GAPE, onde o edital não estabeleceu nem metas, nem prazos, nem especificou projetos.
Risco jurídico
Também na parte de interferência sobre as obrigações de fazer existe surpresa. O decreto diz que “nas hipóteses de aplicação de sanção de obrigação de fazer pela Anatel, a definição das ações a serem executadas pelos agentes regulados deverá observar as diretrizes estabelecidas pelo Ministério das Comunicações”. Até ai, é o esperado e está dentro das prerrogativas do ministério.
Mas o decreto vai além e diz que “quando necessário, o Ministério das Comunicações poderá definir as ações a serem executadas para o cumprimento das obrigações de fazer”, o que significa dizer o que será feito, onde e em que condições. Por exemplo, direcionando obrigações às empresa de atenderem determinada região, ou determinada localidade. Algo que hoje é feito pela Anatel em diálogo com as próprias empresas.
No mercado correm já análises sobre os riscos jurídicos que o decreto do governo traz. Em uma análise a que este noticiário teve acesso, aponta-se invasão de competência, já que a Lei Geral de Telecomunicações estabelece a autonomia técnica, administrativa e financeira da Anatel para regular o setor de telecomunicações. “Ao transferir ao Minicom a responsabilidade por definir diretrizes e estratégias, o decreto interfere nas atribuições regulatórias exclusivas da Anatel”, diz esta análise. Principalmente na parte das obrigações de fazer.
Além disso, ao transferir ao MCom a definição das ações necessárias ao cumprimento das obrigações regulatórias, haveria a diminuição da capacidade da Anatel “decidir com base em critérios técnicos e no interesse público”, que estão entre suas obrigações legais.
Outro ponto questionado é que o Decreto 12.282 é explicitamente retroativo a leilões que já ocorreram, o que contrariaria o princípio da segurança jurídica e gestão dos compromissos já assumidos. Segundo esta análise, o decreto acaba por invadir a competência regulatória da Anatel “ao centralizar decisões técnicas no Minicom”.
O risco de judicialização é alto, e o Ministério das Comunicações e Anatel entraram definitivamente em rota de colisão.
Samuel Possebon Teletime, 2 de dezembro de 2024