Iniciativas reforçam o poder da educação no audiovisual como ferramenta de transformação social
Nesta sexta-feira, dia 22 de março, chegou ao fim a primeira edição do Lanterna Film Market, área de mercado do Lanterna Mágica – Festival Internacional de Animação, que acontece em Goiânia (GO) até domingo, 24. O painel que encerrou o evento teve como tema “Narrativas que alcançam o mundo através da educação” e reuniu mulheres que estão à frente de iniciativas que combinam cinema e audiovisual com educação e formação.
Representando a Escola Jurema, Clara Campos e Bianca Bomfim contaram sobre o projeto: uma escola itinerante de educomunicação que oferece cursos de audiovisual, animação, fotografia, rádio e artes visuais em aldeias indígenas na região do Norte da Bahia. “Eu era documentarista de povos indígenas e senti neles essa demanda, de que se tornassem comunicadores e contadores de suas próprias histórias. A ideia é dar autonomia para os povos, capacita-los com essas ferramentas da educomunicação. Só as pessoas brancas contavam as histórias deles”, disse Campos. A Escola tem 12 anos e só no primeiro deles contou com recursos públicos – depois disso, o financiamento foi próprio das duas lideranças do projeto, Clara e Bianca. “É um trabalho que envolve toda a comunidade, desde a criança até os anciões, em uma troca de saberes. Queremos incentivar as crianças a verem beleza nisso. Assistindo à TV, elas são inundadas em um mundo que não é delas”, analisou.
A Escola ministra as aulas teóricas utilizando as estruturas das escolas indígenas das aldeias. Já as aulas práticas são dadas em ocas, nas casas e durante os rituais, justamente para que sejam registradas coisas reais da vida dos indígenas. A ideia era ter um ônibus ou uma van para realizar essas itinerâncias, mas os recursos são bastante limitados. Entre os nomes que já passaram pela Jurema estão Bia Pankararu, produtora cultural e audiovisual, roteirista e atriz, e Graci Guarani, que faz atualmente trabalhos com a TV Globo e assina a concepção do curta “Entre as Estrelas”, que será exibido no Lanterna Mágica no sábado, 23.
O projeto cresceu bastante e, hoje, já existem coletivos de comunicadores indígenas em cada uma das três aldeias em que a Escola atua. “Os coletivos são um sonho realizado, que foi além do que planejamos. Formar os coletivos é dar independência para eles. Claro que seguiremos sempre apoiando, mas com isso, eles podem seguir por conta própria”, destaca Bomfim. Campos ainda ressaltou o caráter político do trabalho: “Eles aprendem a utilizar o audiovisual como forma de denúncia, de falar sobre os problemas. Ensinamos que, diante de uma violência, por exemplo, eles podem ligar a câmera, registrar, fazer uma live. Usar o audiovisual como ferramenta de luta. No fim, alguns vão para esse lado político e se tornam verdadeiras lideranças indígenas”.
Cinema como forma de expressão
Outro projeto comentado no painel é o Lanterna Educa, braço do próprio festival Lanterna Mágica. A idealizadora e diretora Camila Nunes enfatizou a importância de “dar nome as coisas” – isso porque o festival já tinha iniciativas nesse sentido de educação e formação, como sessões de cinema para crianças e laboratório de projetos, mas só neste ano transformou essas ações em um eixo da programação do evento. O Lanterna Educa é um espaço focado na formação de professores do ensino público e privado para o audiovisual e oferece, além das sessões para as escolas e do “Hospital de Projetos”, oficinas, incluindo uma de introdução à animação para professores. “Sempre tivemos atividades de formação pontuais. Mas agora, sozinha na direção do festival, sei onde quero que ele chegue e como posso fazer para chegar lá. Acredito – como produtora, mulher, mãe – que as crianças precisam ter essa formação do cinema, até para conseguirem se expressar de uma nova forma. O eixo cinema e educação precisa andar junto – só assim conseguiremos transformar o mundo”, declarou. Agora, os planos da diretora envolvem transformar as oficinas do Lanterna Educa em um módulo de formação para além do festival, isto é, que estejam à disposição para serem ministradas em outros espaços e em outros momentos. A ideia é abrir para o público em geral, mas sempre com foco nas crianças e nos adolescentes.
Animação vira ferramenta de empoderamento
Esther Kemi é diretora, produtora, filmmaker, animadora especializada em stop motion e diretora criativa da Radioxity Media. Natural da Nigéria, ela desenvolve um projeto de educação em animação no país. Kemi aprendeu a animar de maneira autodidata – teve a ideia de aprender animação ao tirar uma série de fotos dos brinquedos do filho – e sentiu a necessidade de passar esse conhecimento para frente. “A ideia era ensinar outras pessoas do meu país e, assim, trabalharmos com isso juntos”, contou. A maioria dos primeiros alunos dela eram fazendeiros e não tinham muito acesso à informação. Focando principalmente em mulheres, a produtora se sentiu motivada a promover o empoderamento feminino por meio dessas possibilidades de trabalho em animação. “Nos últimos anos, persisti nesse processo. Ainda não cheguei onde quero chegar, mas já avancei muito. Hoje, já lançamos filmes que estão rodando o mundo em festivais”, celebrou. A diretora ressaltou que a Nigéria enfrenta problemas econômicos e sociais cada vez piores – a situação é desfavorável especialmente para as mulheres – e que por isso é importante pensar em fortalecê-las também mentalmente.
Atualmente, Kemi desenvolve um projeto de formação em animação voltado ao público jovem e angariou uma parceria para a iniciativa com o Festival de Berlim, que auxilia financeiramente esses jovens com bolsas de estudo para que eles possam focar em educação e não tenham que se preocupar com trabalho ainda. “Eles se tornarão profissionais e construirão suas carreiras. Poderão trazer com mais força e veemência as histórias africanas que querem contar. Terão esse lugar de protagonismo. Não é sobre o quão caro é um filme, e sim sobre poder contar sua história e levá-la para o mundo. Acredito que, quando você tem um talento e uma habilidade, deve passar isso pra frente. É assim que a educação muda o mundo. Temos muitos talentos jovens na Nigéria, com habilidades artísticas muito especiais. Formar pessoas é um caminho para construirmos histórias audiovisuais de fato mais diversas”, concluiu. No Lanterna Mágica, serão exibidos dois curtas dirigidos por Kemi: “PDT” e “No one hears us”. Ambas as sessões acontecem no sábado, 23.
Papel das políticas públicas
E pensando na evidente ligação que a união de cinema e educação tem com as políticas públicas, o painel ainda recebeu a vereadora por Goiânia Aava Santiago, que é socióloga de formação, ativista pela escola pública e pelos direitos das mulheres e idealizadora da Frente Intermunicipal de Mulheres Pelo Fim da Violência Política de Gênero. Foi o gabinete da vereadora que financiou os ônibus que levaram as crianças das escolas públicas ao cinema para assistirem às sessões infantis do Lanterna Mágica nos últimos dias.
“Antes de vir para Goiás, eu morava no Rio de Janeiro, em uma favela muito violenta, que foi totalmente largada pelo Estado e dominada pela milícia. Tenho certeza que se ferramentas de educação como essas poderiam ter reinventado o lugar que foi meu ponto de partida e mudado o destino de muitos de nós”, refletiu. “Quando penso em narrativas que alcançam o mundo através da educação, penso em território, isto é, poder contar histórias sobre si mesmo que falem outras coisas para além daquelas que querem contar sobre nós. Reivindicar essa ida do audiovisual para o território está entre as maiores urgências se queremos encurtar as distâncias entre as juventudes periféricas e o que elas poderiam ser se não fossem os abismos sociais que existem”, defendeu.
Santiago questionou o que exatamente significa proporcionar acesso ao cinema – lembrando inclusive que esse acesso foi tema de redação do ENEM em 2019: “Não acho que democratizar o acesso ao cinema no Brasil seja fazer com que as pessoas tenham dinheiro para pagar o ingresso de uma sala VIP ou condições de compreender um longa-metragem. Pensar o acesso ao cinema atrás das câmeras e edições é a grande chave que podemos girar. O cinema pode ser a pedagogia do oprimido”. Para ela, o caminho começa na escola pública: “É nesse lugar que precisamos nos estruturar, disputar e não podemos arredar o pé”.
Santiago reconhece que os principais desafios do audiovisual na educação envolvem financiamento e aponta caminhos possíveis para mudar o cenário. “Precisamos nos organizar e nos formalizar para essa mudança. Tentei mandar emendas parlamentares para alguns festivais e não consegui porque eles não tinham condições de receber a emenda. Isso é desesperador, porque a gente perde o recurso”, destacou. “Cabe a nós uma articulação política. Eu sou só uma vereadora de Goiânia. Tenho quatro milhões de emendas por ano. Os deputados de Goiás têm mais de 100 milhões por ano. Quando disso vai para o audiovisual? E mais: quanto disso vai para o audiovisual na escola?”, questionou. E por fim, concluiu: “É necessário criar uma frente que envolva uma articulação política para fazer esse recurso chegar. Ter essas demandas na prioridade do orçamento público é fundamental”